terça-feira, 27 de maio de 2008

Eu aborto, tu abortas, somos todas clandestinas…

Reproduzo aqui o artigo de Nilcéia Freire, ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, a respeito da decisão do juiz Aloísio Pereira dos Santos, que pretende levar a julgamento 9.896 mulheres acusadas de praticar aborto.
Pergunto: por que não julgar também os homens que ajudaram a gerar esses fetos? Por que a responsabilidade recai somente sobre a mulher?
Pergunto de novo: até quando vamos nos submeter a uma legislação arcaica, medieval, baseada em dogmas religiosos e preconceitos?
Abortar é uma decisão difícil e dolorosa -- nenhuma de nós aborta porque quer ou acha bonito. Trata-se de necessidade. Em geral, porque a miséria não comporta mais uma boca para dividir a comida rara. E porque o homem, que não carrega o feto dentro dele, some, deixando a mulher sozinha com a responsabilidade e a decisão.
Minha solidariedade às mulheres campo-grandenses. A todas aquelas que já abortaram. E àquelas que ainda abortarão.

Fúria judicial contra as mulheres*
NILCÉA FREIRE
Está em curso, em Mato Grosso do Sul, um episódio assustador e de imensa fúria persecutória contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, no Brasil.
Nada menos do que 9.896 mulheres mato-grossenses estão prestes a serem interrogadas e levadas a julgamento, num só processo, no qual são acusadas de terem provocado abortos, desde o final dos anos 90, conforme decisão do juiz da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Mato Grosso do Sul, Aloísio Pereira dos Santos. A decisão, historicamente inédita, é tão injusta quanto estarrecedora, apesar de encontrar amparo na legislação brasileira.

Em abril do ano passado, houve a instalação de um inquérito contra a proprietária de uma Clínica de planejamento familiar, com 20 anos de funcionamento no centro de Campo Grande (MS), acusada de praticar abortos. A apreensão de milhares de prontuários médicos daria origem ao processo em massa contra as quase 10 mil mulheres.

A delegada Regina Márcia Rodrigues Mota, que conduz o caso, afirmou que está estudando “a organização de uma força-tarefa para concluir os inquéritos e remetê-los à Justiça”. O promotor de Justiça Paulo César dos Passos fundamentou: “A pressa é para evitar a prescrição do delito, que ocorre em oito anos.”

No ímpeto de condenar, a Justiça promoveu constrangimentos ilegais. Prontuários médicos, dos quais as instituições de Saúde são as guardiãs, segundo a legislação brasileira, foram apreendidos e colocados à disposição da curiosidade de quem quer que seja. Na seqüência, o juiz recuou, devido à grande procura - principalmente de homens - por interessados em saber o nome das clientes.

Qual é a real motivação de tamanha truculência? Será que realmente é o caso de se instituir uma força-tarefa como se estivéssemos tratando de uma horda de delinqüentes de elevada periculosidade para a vida em sociedade? Está sendo justa a Justiça? E a responsabilidade dos 9.896 homens supostamente associados àquelas gestações? Também será em algum momento lembrada e cobrada judicialmente?

O Brasil é signatário de diversos instrumentos jurídicos e acordos internacionais, entre eles a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as mulheres e a Plataforma de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, que visam a assegurar o direito à Saúde sexual e reprodutiva das mulheres. O aborto provocado é reconhecido, mundialmente, como um importante problema de Saúde pública, especialmente nos países cujas legislações restringem a sua prática, como é o caso brasileiro.

Enquanto a taxa de aborto por 1.000 mulheres é de 4/1.000 em países como a Holanda, no Brasil a estatística é 10 vezes maior: 40/1.000. Não há família, no sentido amplo, que não tenha vivenciado esse drama.

Esse descompasso entre a vida cotidiana das pessoas e a criminalização da prática do aborto fica evidente no episódio em curso na Justiça mato-grossense, além de comprovado por inúmeras pesquisas especializadas.

Para se ter uma idéia, segundo a pesquisa aborto induzido: Conhecimento, Atitude e Prática de Ginecologistas e Obstetras no Brasil, realizada em 2005, pelo Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp), aproximadamente 80% dos ginecologistas e obstetras ouvidos (3.386 profissionais) que viveram alguma situação de GRAVIDEZ indesejada em suas vidas (homens e mulheres) optaram pela interrupção voluntária da GRAVIDEZ, mesmo fora das possibilidades legais vigentes.

O mesmo levantamento, contudo, nos informa que cerca de 50% dos médicos respondentes à pesquisa e que trabalham em serviços públicos de Saúde, diante de um caso de aborto - ainda que previsto em lei - optam por pedir a outro profissional para que realize o procedimento.

Outro estudo do Cemicamp revela que, no âmbito do Poder Judiciário, quatro de cada cinco magistrados que vivenciaram uma GRAVIDEZ indesejada decidiram que a situação justificava a prática do aborto. No entanto, cerca de 50% dos juízes não abrem mão da exigência de alvará judicial para autorização da prática de aborto prevista em lei (casos de risco iminente de morte para a mãe e Estupro), procedimento desnecessário conforme as próprias normas jurídicas vigentes.

Esses indicadores demonstram que, quando estamos mais próximos de quem vivencia uma GRAVIDEZ indesejada, é maior a tendência a justificar a interrupção voluntária da gestação, ainda que isso não signifique alteração na rejeição ao aborto em si.

Todas as pesquisas de opinião revelam que a maioria dos brasileiros preferiria que nenhuma mulher tivesse que provocar um aborto. Mesmo aquelas mulheres que terminaram por provocar um aborto manifestavam opinião contrária a essa prática, até se verem na situação que as levou a optar pela interrupção da gestação.

O que está por ser aferido - e a reação da opinião pública ao caso das 9.896 mato-grossenses poderá contribuir para esse balizamento - é a taxa de rejeição a prisões de mulheres por aborto, na sociedade brasileira.

O primeiro passo foi dado, na semana passada, por um conjunto de organizações feministas e de defesa dos direitos das mulheres, que denunciou à Subcomissão da Defesa da mulher, no Senado Federal, a violação dos direitos humanos das mulheres no contexto do caso de Campo Grande.

Urge responder, no caso de Mato Grosso do Sul, se está sendo justa a Justiça.

* publicado no jornal O Globo de 28/4/2008.




3 comentários:

Anônimo disse...

Concordo plenamente com você.
Sua visão é realista e isenta de preconceitos.
Um beijo
Maria Augusta Toledo

Anônimo disse...

Seria a morte uma a solução? Hoje, o que resta aqueles que incomodam é a morte... Simples assim... Por que ao invés que apoiarem a aprovação do aborto não incentivam as entidades a investirem em campanhas? O que sairia mais barato e menos doloroso: a prevenção ou a máquina que suga e tritura o feto?

Baby Siqueira Abrão disse...

Caro anônimo, de que morte você fala? Não há morte em aborto. Essa é uma visão religiosa, e nosso Estado é laico. Nem a CNBB, nem Igreja alguma tem o direito de se intrometer na legislação -- mas se intrometem. O resultado são mulheres obrigadas a criar filhos que não querem, infelizes, emocionalmente acabadas, em geral abandonadas. Homens podem isentar-se de responsabilidades: basta sumir. E as mulheres? Tratadas como parideiras, sem direito a decidir como tocar suas vidas, sem direito a escolher se querem ou não ser mães, sem direito algum... por causa de dogmas religiosos! As Igrejas já causaram muito estrago à humanidade. Acusaram, prenderam, mataram, torturaram. Seus ensinamentos valem para quem as segue; não são verdades universais. Essa é a questão. Não se trata de escolher entre campanhas e o aborto. Trata-se de afirmar direitos e de defender a laicidade dos Estados republicanos. Não pense que as mulheres abortam porque gostam. Elas o fazem por razões próprias, íntimas, que merecem respeito. Veja: sou ateia, não acredito que um embrião (e não "feto") tenha vida, alma ou coisas do gênero. Por que devo ser obrigada a seguir dogmas? Morte, caro anônimo, é ter um filho indesejado, que estará sob nossa responsabilidade por toda a vida. Morte é suportar sozinha ou a gravidez ou o aborto, enquanto vocês, homens, desaparecem e continuam tocando a vida sem se importar com o que fizeram. Morte é suportar o preconceito e a intolerância. Morte é viver nesse clima medieval imposto por religiosos que não têm a menor ideia do sofrimento de uma gravidez indesejada. Eles que se recolham a suas estreitas cabecinhas e preguem a seus fieis. Em Estados laicos, como o nosso, eles não podem legislar nem fazer pressão, nem lobby, para impor suas crenças à população.
Quanto a sair "barato": dinheiro não compra a dignidade das mulheres. Temos sentimentos, emoções, direitos. Nós, e não vocês, decidimos nossas vidas.