quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Felliniana

Para quem, como eu, acostumou-se a discutir a coisa pública com seriedade, assistir à sessão de ontem na câmara dos vereadores de Cotia foi um ato de penitência. Ou, para sair da esfera católica e sua carga repressiva, cheia de mea culpa, foi um momento de pôr à prova a paciência e a tolerância. A indignação crescente, sem ter como se expressar -- o público não pode se manifestar --, tinha de ser sufocada. E sublimada, para evitar efeitos nocivos à saúde, como hipertensão e taquicardia. Sim, a câmara de vereadores de Cotia também é um caso de saúde pública!
Que o diga o senhor de cabelo branco da última fila que, farto daquela gororoba, levantou-se e, aos berros, denunciou a farsa. Admoestado pelo presidente da câmara e pelos seguranças, ainda exigiu ser tratado como cidadão dentro da casa que supostamente é do povo mas que, na verdade, foi-lhe surrupiada por uma prática política apoiada em séculos de clientelismo e manipulação. Qual o quê! Levaram-no para fora, e do saguão ouvíamos seus argumentos -- corretíssimos.
Quanto a mim, decidi por uma sublimação que, embora freudiana, foi buscar inspiração em Fellini. A trilha sonora de Amarcord soava em minha cabeça enquanto os olhos assistiam àquela peça farsesca. A caricaturização dos personagens, a ênfase -- ora carregada de ironia, ora de compaixão, ora um misto de tudo isso -- em seus pontos mais marcantes, características do cinema de Fellini, estavam ali, a minha frente. E, para ficar em Amarcord, a imagem do Duce e sua trupe desfilando na cidade substituíram a imagem do crucifixo esquecido numa das paredes da câmara.
Nem Cristo agüentaria. E diria: "Perdoai-os, pai. Elessabem o que fazem".
Que na leitura das atas os senhores edis se distraíssem, é compreensível. Já as leram e assinaram. Mas que continuassem a se comportar como se estivessem num embalo de sábado à noite enquanto a Mesa lia o PL do novo zoneamento é inadmissível. Mortificada, constatei o pouco-caso com que grande parte deles trata os nossos interesses. Com exceção do presidente da câmara, Moisezinho (que de "inho" não tem nada), do dr. Laércio, do Almir (que apareceu por lá) e do Kalunga, que acompanhavam a leitura, os demais riam, andavam, conversavam. Um atentado contra a cidadania, a coisa pública, o papel que representam.
Dos 81 artigos da lei de zoneamento, apenas 11 foram lidos. A meia hora regulamentar para a leitura do projeto não foi respeitada. Além disso, havia muita coisa a ser votada que foi adiada para daqui a (pasmem!) 15 sessões. Houve manobra para levar à falta de quórum, com a desculpa de que, ao pedir a palavra, o vereador conhecido como Tagarela (entendi o apelido: ele fala pelos cotovelos e não presta atenção à sessão) iria partir para o ataque pessoal. Um teatro. Uma farsa.
Escrevi uma moção, protestando contra a atitude desrespeitosa dos vereadores. Assinada por representantes de movimentos que estavam na platéia, ela foi entregue ao Kalunga, que a encaminhou à Mesa.
De bom, só a maciça participação popular e os protestos finais, na forma de vaias. E de uma recomedação, digamos, médica: um cidadão, caixa de medicamentos ao alto, receitava Viagra aos vereadores. Pra eles elevarem o nível.
Terça-feira que vem estarei lá de novo. Com filmadora e cronômetro. Adoro Fellini.


Nas fotos a seguir, feitas por Fau Barbosa (www.faubarbosa.uniblog.com.br):
a) cidadãos lotam a Câmara e vaiam vereadores no final da sessão; b) vereadores conversam antes do início dos trabalhos.

7 comentários:

Anônimo disse...

Baby
Gostaria de parabenizar a você e a todos os cidadãos que estiveram na câmara de vereadores ontem.
Gostaria de acreditar que um dia nossos políticos serão pessoas sérias e não grandes fanfarrões como são hoje. Porém não tenho esta ilusão e acho que se quisermos que a Lei de Zoneamento seja aprovada antes que desmatem toda a Granja Viana teremos que nos mobilizar mais e mostrar a estes senhores da câmara que eles tem que nos prestar contas e que não estão nos fazendo nenhum favor.
Parabéns a todos.
Martha

Baby Siqueira Abrão disse...

Oi, Martha!
Você encontrou a palavra certa: fanfarrões! É o que uma parte deles é. O que você sugere para uma maior mobilização?
Um abraço,
Baby

Baby Siqueira Abrão disse...

Oi, Alfredo!
Você chamou a atenção para um ponto fundamental: os personagens da câmara podem ser de ficção, mas o que eles fazem afeta nossa realidade. Vamos a Woody Allen e "A rosa púrpura do Cairo", aquela pequena obra-prima de 1985! Melhor falar em cinema do que na cidade, não é? Porque, como disse o Chico Buarque, em "Meu caro amigo", "a coisa aqui tá preta/Muita mutreta pra levar a situação/Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça...". C'est ça, meu caro amigo Alfredo. É um prazer e um privilégio tê-lo como amigo e como leitor.

Fau Barbosa disse...

Realmente, estou até agora com um sentimento estranho dentro de mim, com relação ao que presenciei lá ontem.
Um misto de indignação e de pena. Indignação pelo desrespeito com que me senti tratada no meio daquela bagunça, assim como os demais presentes (e a casa estava lotada!).
E de pena, pelo meu Municipio que perde muito com esse tipo de postura.

Baby Siqueira Abrão disse...

Oi, Fau!
Bem-vinda!
Você tem tazão: o município, seus cidadãos, são os grandes perdedores. Mas, como nós duas somos muito teimosas, vamos continuar freqüentando as sessões e indomodando certos vereadores até eles tomarem rumo -- de preferência, o da porta da rua, destituídos pelo voto. Beijo!
Baby

Anônimo disse...

Olá Baby e Fau ..., tudo bem?
Gostei muito de conhecê-las na Sessão da Câmara, e fiquei muito entusiasmado com a postura que tiveram durante a sessão e vossas iniciativas, que se sucederam após ao que presenciaram. Uma postura ativa é isso que precisamos, de pessoas que tenham a coragem não a apenas de observar o que está errado, mas exigir correções de rumo, mudança de atitude e buscar soluções coletivas para o problema. No caso da Câmara de Cotia, ela só vai mudar e passar a ser a Casa do Povo, como diz o seu regimento interno, quando o povo começar a participar das sessões e exigir que os Políticos que lá estão, colocados por nós, também mudem por medo de perder o nosso voto! Um abraço e Bem-vindas à luta por uma democracia participativa em nossa cidade! Manoel Santos (Nelinho). Voto Consciente Cotia.

Baby Siqueira Abrão disse...

Oi, Nelinho!
Devolvo os elogios a você, à Lourdes e ao Almério, que iniciaram o Voto Consciente em Cotia e que vão à Câmara sempre. O trabalho de vocês é fantástico. Sigamos juntos! Vamos melhorar esta cidade!
Um abraço,
Baby